segunda-feira, 1 de julho de 2013

A vida nova








MEU DEUS É FOME
MEU DEUS É NEVE
MEU DEUS É NÃO
MEU DEUS É DESENGANO
MEU DEUS É CARNIÇA
MEU DEUS É PARAÍSO
MEU DEUS É PAMPA
MEU DEUS É CHICANO
MEU DEUS É CÂNCER
MEU DEUS É VAZIO
MEU DEUS É FERIDA
MEU DEUS É GUETO
MEU DEUS É DOR
MEU DEUS É
MEU AMOR DE DEUS

Poema de de Raúl Zurita (1950). Os versos foram escritos, com fumaça, no céu da cidade de Nova York, em 1982. Os registros fotográficos apresentados aqui foram feitos por Ana Maria Lopez e Lionel Cid e estão publicados no livro Anteparaíso. Um registro parcial em vídeo pode ser visto aqui. A ideia das escrituras no céu foi apropriada por Roberto Bolaño na sua novela Estrela distante. Abaixo, apresento trechos de uma entrevista (concedida a Chiara Bolognese, disponível aqui) em que Zurita comenta a sua relação com a visão do Chile e com a obra de Bolaño.


*





(...)

Você já tinha lido Bolaño antes da publicação de Estrela distante? O que pensa da literatura dele? Sua opinião mudou depois de ter sido "usado" como personagem?

RZ: Não. Soube de Bolaño apenas no final dos anos noventa, porque Carlos Olivares, um escrito chileno que morreu há alguns anos, me falou dessa novela, e a comentou comigo precisamente porque havia um personagem que escrevia poemas no céu. Me pareceu fantástico, e certa vez que me perguntaram sobre isso respondi que um artista tinha o direito de pegar o que quisesse, de onde quisesse, sem pedir permissão a ninguém, e que se as escrituras sobre Nova York tinham servido para modelar um personagem, estupendo. Nunca li a novela inteira, me refiro a lê-la do princípio ao fim, porque, claro, a minha curiosidade era saber que diabos outra pessoa poderia escrever no céu. Foi uma desilusão. Senti que ele fazia que seu personagem escrevesse tudo o que eu teria descartado em dois segundos, obviedades como frases em latim e coisas assim; foi como ver meus rascunhos. Não, o autor da novela não tinha entendido nada, estes versos eram óbvios e maus, além de tecnicamente impossíveis. Com um avião daqueles você não pode escrever essas frases, Wieder acabaria vomitando até as tripas com tantas voltas. Seria preciso cinco aviões que voassem em linha reta. Seria preciso uma esquadrilha.

Você e Bolaño representam duas formas diferentes de suscitar e de estar entre as polêmicas do mundo cultural chileno. Refiro-me a esse universo que Bolaño sempre criticava e agitava assim que chegava ao Chile, e que também lhe tratou bastante mal, certo? Pode falar um pouco sobre isso?

RZ: Um poeta não pode se limitar, é uma bobagem fazê-lo, porque os outros já o farão, e muito; não terão passado cinco minutos e logo vão dizer que isso não pode, que isso não é poesia, ou que você está louco. Acho que sei algo a respeito disso, é muito chileno. Mas eu permaneci ali, construímos sob uma ditadura, fizemos as ações de arte sob a ditadura, não fazíamos coisas chiques como virar poetas malditos interrompendo uma leitura de Octavio Paz. Imaginar poemas escritos no céu ou traçados sobre o deserto de Atacama foi minha íntima forma de resistência, de não me resignar, de não morrer na noite feroz do Chile. Inventei as ações de arte que fizemos com o CADA, como lançar, de alguns aviões, quatrocentos mil panfletos sobre Santiago em 1980, em plena ditadura, porque toda a nossa vida estava nisso, toda nossa juventude, nosso medo e nossa beleza. Nos tocou, a mim e a Bolaño, viver em mundos muito diferentes, e as coisas que atacamos sob una mesma palavra, Chile, eram duas coisas diametralmente distintas, que jamais se juntaram e que só têm em comum a palavra dor. Os amigos de Bolaño eram crianças fazendo travessuras, pequenas maldades no DF. Nós tivemos que aprender em dois segundos a viver sob as barbas de Pinochet, não tínhamos tempo para esse passatempo inocente de inventar-nos uma marginalidade ad hoc, não éramos infrarrealistas. Pessoalmente, teria trocado o pior dos empregos que Bolaño teve pelo melhor dos empregos que eu consegui ter nesses anos. Eu roubava livros nas livrarias não para lê-los, mas para vendê-los e poder comer. Tudo isso não diminui em nada a envergadura de Os detetives selvagens que li, imagino, com a mesma devoção com que ele leu Anteparaíso, de onde tirou as escrituras no céu.

(...)

Nestas páginas se delinearam analogias e diferenças entre sua visão do Chile e da ditadura e a visão de Bolaño. O que pensa da poética de Bolaño? No que concorda e no que discorda? Acredita que o Bolaño poeta sobreviverá?

RZ: A poesia de Bolaño, me refiro ao que ele ou seus editores ou seus herdeiros qualificaram como tal, é insuportável, mas não são piores que os poemas de William Faulkner, e Faulkner conseguiu ser Faulkner como Bolaño conseguiu ser Bolaño. O que quero dizer é que para quem se importa com isso, não conseguir escrever um poema minimamente passável e perceber que se é um péssimo poeta, produz um sentimento de frustração, de fracasso, de vacuidade, de inutilidade, que só restam duas possibilidades: ou você passa a fazer parte do exército dos ressentidos, dos quais o mundo está cheio e diante dos quais o melhor é fazer o que Virgílio diz a Dante no começo do terceiro canto do Inferno: "guarda e passa", ou você escreve The sound and the fury. Então, que providencial que William Faulkner, que Julio Cortázar, que Roberto Bolaño, tenham sido péssimos poetas; como compensaram! As grandes obras que eles criaram compartilham uma condição paradoxal: foram extraordinários escritores graças a terem sido horripilantes poetas.