quinta-feira, 27 de junho de 2013

Estética - polêmica / Carta de Winétt de Rokha a Witold Gombrowicz (excertos)




(...)


Os versos agradam bastante à humanidade e a prova disso é que juízes, militares, médicos, advogados, políticos, só se sentem grandes quando dizem que num dia distante: eles também faziam versos...

Que alguém não goste de versos, isso pouco importa à Poesia universal.

(...)

O jogo de caça às imagens que o senhor Gombrowicz propõe poderia ser resolvido com a elementar frase escolar: a ordem dos fatores não altera o produto. Se havia imagens belas, se havia poesia, pouco importava lê-las antes ou depois. Se o poema não tinha uma espinha dorsal onde se apoiar, ou, em último caso, um tema, coisa absurda no poema moderno, cada imagem poderia viver por si mesma.

O mais natural é que os poetas escrevam, principalmente, para os poetas. Os poetas de massa, Pablo de Rokha, Whitman, serão lidos e apreciados por seus povos daqui um século.

A razão é bem simples. Um poeta de categoria que, durante trinta e tantos anos trabalha sua personalidade, ou seja, seu estilo, até alcançar o grau máximo de perfeição, não poderia ser entendido por aquelas multidões que, enquanto ele queimava as pestanas à luz de um lampião surdo, coçavam, sob o sol, a crosta da indiferença culpável ou da estupidez congênita.

O autor do artigo "Contra los poetas" faz alarde do fato de não gostar da poesia pura. Se por isso o senhor Gombrowicz entende a poesia abstrata que acredita viver à margem dos acontecimentos exteriores, dou a ele toda a razão.

Não é possível imaginar um senhor com a cabeleira cheia de piolhos, com barba por fazer, escrevendo loas à amada imóvel ou à lua, enquanto as multidões aterradas da Europa e da Ásia vão pelos caminhos como cães desterrados, famintos, esqueléticos, doentes de dor e impotência.

A poesia, senhor Gombrowicz, nunca é excessiva.

Os grandes poetas não desprezam elementos apoéticos, mas os utilizam. Outra vez lembre-se de Whitman ou de Rokha. Eles, precisamente, destruíram o que o senhor chama de monotonia.

É natural e lógico que o escritor e poeta profissional tenha, para seu desenvolvimento e seu uso, um material próprio selecionado. Se não fosse assim, seria como pedir a um médico que usasse uma linguagem de carroceiro ao se dirigir aos seus colegas em algum congresso ou aula universitária.

Queira-se ou não, os poetas ..................................................

Sem ir mais longe, Nietzsche deu parte do seu trágico talento a Hitler.

A poesia jamais será uma máquina porque para sê-lo precisaria deixar de ser individual.

A forma religiosa, em poesia, é a administração do eu, que se utiliza dessa poesia para brilhar, em defesa própria.

A forma laica é a arte coletiva, ou seja, o marxismo.

Os poetas não precisam de vinculações ex profeso com o meio porque, se são poetas, estão vinculados de fato com sua época e com a humanidade que os rodeia. Sem isso seriam inexistentes.

A arte não pode nem deve rebaixar-se às massas, isto seria subestimá-las. São as massas que devem elevar-se até a arte.

O Ulisses de Joyce me parece uma das obras máximas de um século. Não me aborrece por excesso de técnica. Penso que Joyce foi um artista-psicólogo, produto necessário, de superfície, daquela Inglaterra hipócrita e falaz que sempre precisou desterrar os seus gênios: Byron, Wilde, Joyce.

Seu exemplo do xadrez é nítido. Além disso, é moderno. Nos Estados Unidos, ninguém nunca discute com os adversários, nem em religião nem em política. A discussão é o reforço lógico das próprias ideias e convicções.

As assonâncias e dissonâncias já são um tema escolar, elementar, que ninguém leva mais em conta.

Se o poeta, ao escrever, pensasse que será lido por militares e sapateiros deveria se remontar à Bíblia e amarrar uma pedra no pescoço e se atirar ao mar.

O senhor pensa que o poeta, ao dirigir-se aos demais, parece se dirigir de cima, isto não é correto, o que acontece é que ele se dirige desde outro ângulo. Não existe essa coisa de cima e de baixo, há distância, simplesmente.

(...)

Por qual motivo, senhor Gombrowicz, o senhor acha que os espectadores riem e caçoam num "Congresso de escritores"? Pura e simplesmente por inveja, por incapacidade. Por que esses mesmos espectadores não caçoam num congresso de mineradores, de médicos ou de políticos? É que estes últimos servem no imediato.

Dificilmente Shakespeare ou Dostoievski ou Pascal podem ser exemplos de poetas específicos como seriam em último caso Whitman, Lautréamont, Rimbaud ou Baudelaire, Byron ou Poe.

A poesia pura é, nestes momentos, francamente estúpida. A versificação com ritmo é uma forma arcaica que pouco a pouco tem que desaparecer.

A rosa, o amor, a noite, os lírios, existirão sempre que o poeta saiba situá-los dentro de um estilo novo e encontre, em relação a eles, a distância e a perspectiva necessária de que todas as coisas precisam para existir no mundo da Arte verdadeira.

Ninguém que não seja um degenerado escreve para si mesmo, senhor Gombrowicz. Nem Narciso seria capaz de se contemplar em águas paradas. Provavelmente se contemplaria em águas correntes.

(...)

Os livros são lidos. Pergunte nas editoras. Somente na Argentina se edita 20 milhões de exemplares por ano.

A criança ama os poetas, não porque seja ensinada a amá-lo, mas porque os poetas têm a alma das crianças quando são puros.


Esta carta, escrita por Winétt de Rokha (1892-1951) a propósito e em resposta à conferência "Contra los poetas", do autor polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), aparece anexa ao artigo "Winétt de Rokha y la vanguardia literaria en Chile", de María Inéz Zaldivar, com o título "Estética - polémica". O artigo está publicado no volume Bibliografía y antologia crítica de las vanguardias literárias - Chile, organizado pela própria María Inés Zaldivar e por Patricio Lizama.

*



A polêmica conferência de Gombrowicz, em tradução minha e de Clarisse Lyra, pode ser lida no Caderno de Leituras No. 17, publicado na Chão da Feira.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O ouvido




a L.v.B.
(Study for a conversation piece)


1. O ouvido é um órgão às avessas; só escuta o silêncio.

2. Se o ouvido não fosse um órgão às avessas, quer dizer, um órgão feito para escutar o silêncio, só ouviríamos o ruído ensurdecedor produzido pelas galáxias, pelas nebulosas, pelos planetas e pelos demais corpos celestes em seus deslocamentos através dos enormes espaços interestelares.

3. Os sons, ruídos, palavras, etc., que o nosso ouvido capta, são na verdade borbulhas de silêncio que viajam desde a fonte emissora que as produz até o órgão receptor de silêncio que é o ouvido.


Excerto do capítulo VII (El desorden de los sentidos) de La nueva novela (1977), livro de Juan Luis Martínez (1942-1993).

terça-feira, 25 de junho de 2013

Golpes de guitarra





Durmo/ está claro
e há uma janela aberta/ árvores
esperando lá fora

mas dentro de mim uivam ruas escuras
carregadas de álcool/ ardendo e perigo vivo
                                     muito perigo nos enormes edifícios
                                     de merda
                                     morte
                                     dor

ruas de gente sem um real no bolso
assassinos que caminham drogados/ e choram
com seu instinto de conservação ao vento

Estes golpes de guitarra elétrica acoplada
e Jimmy Hendrix
                         quem não recorda seu guinchar
com suas concentrações de unidade
e rios que despencavam do céu
como cantos blues mapuches
mirando o Poente subir
para encontrar-se com Deus?

                                              Nestas horas as estradas e caminhos
                                       solitários irão pelo país
                                       cobertos por uma maravilhosa luz azul
                                       festas longínquas sobre
                                       o barco iluminado

o mar que cresce e cresce em cada coração patriótico
uma janela aberta árvores
esperando lá fora
cada um cantando sua canção nacional


Poema de José Ángel Cuevas (1944). Do livro 30 poemas del ex-poeta José Ángel Cuevas (1992).

O poeta e o poder


Dos poetas chilenos que vivem no Chile, o mais interessante é Juan Luis Martínez. Dos que não vivem aqui, David Rosenmann Taub. Os dois, alheios a grupos, dedicam-se àquilo que lhes interessa - não à notoriedade, mas à poesia.

Comecemos pelo que está mais próximo. Publicou pouco; sua obra mais notável é "La Nueva Novela". Este romance é poesia em verso.

Por uma razão misteriosa, a poesia no Chile trata de todos os grandes temas com atrevimento; enquanto que a prosa de ficção apenas margeia vários dos mais cotidianos, profundos e urgentes. Este é o caso do poder. É bem sabido que os grandes assuntos literários são o amor (e seu contrário), o poder (e seu contrário) e a morte (e seu contrário...). O amor de Sicrano e Fulana, ou dois sicranos entre si, mais fulanas consigo, costuma ser o tema dos romances. A morte, assunto de todos, e a luta contra ela, também o são. Mas também o poder e seus contra-poderes, o ser objeto e, ainda mais, sujeito no exercício do poder? Como se isso fosse um assunto insignificante; como se a política - para chamar aquilo que é relativo ao poder com essa palavra complexa - não ocupasse o tempo dos chilenos, incluindo-se aí os escritores. Conversem com qualquer um. É mais do que provável, é certo que começará a conversa fazendo referência àqueles que mandam, uniformizados ou não, àqueles de quem dependemos com gosto ou desgosto; os que condicionam nossas vidas, quer estejamos dormindo ou acordados.

O poeta Martínez, em várias partes de sua "nueva novela" em verso, fala do atroz problema do poder. A última parte do seu livro, depois de singulares "Notas y referencias", se intitula "Epígrafe para un libro condenado: (La Política)". A epígrafe mesmo diz: "O pai e a mãe não têm o direito da morte sobre seus filhos, mas a Pátria, nossa segunda mãe, pode nos imolar para a imensa glória dos homens políticos. F. Picabia".

"La desaparición de una familia", ainda que o autor não o tenha concebido dessa forma, é o maior poema de desaparecidos de que se tem memória. O poeta sempre fala daquilo que ocorre, ainda que não o saiba. Assim, repete ao final de cada estrofe:

"al menor descuido se borrarán las señales de ruta
y de esta vida al fin, habrás perdido toda esperanza".
"al menor descuido olvidarás las señales de ruta"
"al menor descuido confundiréis las señales de ruta"
"al menor descuido ya no escucharás las señales de ruta".

E ao final:

"nunca hubo ruta ni señal alguna
y de esta vida al fin, he perdido toda esperanza".

O grande gênero da literatura no Chile é a poesia lírica. Fragmentários, contraditórios, incoerentes, os pobres líricos revelam a verdade espiritual de uma sociedade que não é muito completa, nem unívoca, nem congruente. Os poetas no Chile se atrevem a enfrentar-se a si mesmos, enfrentam aquilo que os rodeia e esta realidade irrisória que em vão se tentaria compor como unitária, transparente, incluída em si mesma.

E este é o maior poeta dentre os que vivem aqui. E é, além disso, uma Figura. Benigno, afável, generoso. Estar com ele acalma. Pode se visitado numa vila interior adentro. Igual a si mesmo, alto e ligeiramente inclinado, como que para favorecer a visita, mais educado, porém com simplicidade, do que costumam ser os poetas, que em geral são rabugentos, cheios de si e distantes dos outros, ansiosos, arbitrários. Que alívio! Não fala mal de ninguém, e não porque desconheça o Mal. Seu livro trata dos desarranjos que o pecado original produz cotidianamente. Pois seu tema central é o sacro. Corrijo. Sua terrível ausência.

"borroso en su designio
borrándose al borde de la página"
"en señal de infinito amor a Dios".


Texto de Armando Uribe Arce (1933).

*





Obras de Juan Luis Martínez (1942-1993).

Quando todos partirem





Quando todos partirem para outros planetas
eu ficarei na cidade abandonada
bebendo um último copo de cerveja,
e logo voltarei à vila para onde sempre retorno
como o bêbado ao bar
e a criança a cavalgar
na gangorra quebrada.
E na vila não terei nada que fazer,
senão encher os bolsos com vaga-lumes
ou caminhar à beira dos trilhos enferrujados
ou sentar-me no roído balcão de um armazém
para falar com antigos companheiros de escola.

Como uma aranha que percorre
os mesmos fios de sua rede
caminharei sem pressa pelas ruas
invadidas pelo mato
olhando os pombais
que vêm abaixo,
até chegar à minha casa
onde me isolarei para escutar
discos de um cantor de 1930
sem tratar jamais de olhar
os caminhos infinitos
traçados pelos foguetes no espaço.


Poema de Jorge Teillier (1935-1996). Do livro El árbol de la memoria (1961).