quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Nicanor Parra: Poesia Política




Um preconceito originado nos tempos da "poesia pura", e exacerbado nesta nossa década de recesso político, afirma que os problemas da polis poderiam sujar a pureza das essências líricas, gerando uma poesia panfletária e ideológica de qualidade inferior. Essa ideia não resiste à menor confrontação com a história da literatura. Os grandes poetas gregos, latinos, medievais, modernos e contemporâneos fizeram "poesia política" numa medida considerável. Poderíamos citar, em nosso século, uma grande variedade de registros: o tom profético de Trakl, George e Edith Sitwel; a maneira mista - a perspectiva intimista e pessoal de Kavafis, Machado, Eliot, Quasimodo e Pasternak; o messianismo de Blok, a fantasia irônica de Maiakovski, a militância aberta e programática de Brecht, Aragon, Alberti e, especialmente, do próprio Neruda. É verdade que este último cai, muitas vezes, no panfletário, no pedagógico, na explicação e na apologia, tornando evidente a especial dificuldade do gênero; mas, sem dúvida, é autor de certa poesia política de grande valor. Também o é Nicanor Parra, ao seu próprio modo, que, em contraste com a seriedade nerudiana - um conteúdo revolucionário sob uma linguagem "tradicional" -, consegue a subversão mais íntegra da linguagem mesma, operando através desse elemento político por excelência que é a sua ironia.

Esta antologia de sua Poesía política (Editorial Bruguera), com brioso prólogo de Enrique Lafourcade, se constrói desde 1950 até hoje. Contém excelentes poemas que não são políticos - como "Defensa de Violeta Parra" -, outros que o são em sentido amplo - batalhas campais de robôs e energúmenos, fantasmas ecológicos, crítica da vida nacional -, e muitos que são políticos em sentido estrito e direto. Aqueles que pedem a esta poesia que "tome partido" se surpreendem com a ubiquidade ideológica do autor, que torna possível ler seus poemas - escritos, em sua maioria, durante os quatro últimos regimes do país - de forma quase intercambiável. Obviamente, há muitos que trazem inscritos seu momento e seu alvo: a Unidad Popular, em poemas como esses: "Revolución/ revolución/ cuantas contrarrevoluciones/ se cometen en tu nombre", ou "La realidad no cabe en un zapato chino/ menos aún en un bototo ruso"; enquanto que se trata da atualidade em versos como esses: "Bese la bota que lo pisotea/ no sea puritano hombre x Dios" ou mesmo: "Ayer/ de tumbo en tumbo/ hoy/ de tumba en tumba". Por outro lado, são quase atemporais as referências de poemas como "Los límites de Chile" que, em 1968, diz: "Chile limita al Norte con el Cuerpo de Bomberos,/ al Sur con el Ministerio de Educación,/ al Este con la Cordillera de Nahuelbuta/ y al Oeste con el vacío de las olas del Océano que se nombró más arriba,/al Sur con González Videla./ En el medio hay una gran plasta rodeada de militares, curas y normalistas/ que succionan a través de cañerías de cobre". Inclusive, há na antologia poemas duplos ou "correspondentes", cujo núcleo é o mesmo, mas que se matizam de outro modo, segundo o regime contra o qual apontam.

Esta versatilidade ideológica provocou contra o autor a acusação de ser "palhaço da burguesia", feita por certa esquerda. É o previsível para um autor que dispara quase simultaneamente contra os quatro pontos cardeais, que vive rompendo os esquemas e os rótulos, e que se deixaria tipificar apenas com o vago título de anarquista. No aspecto formal, por sua vez, há uma ambiguidade intrínseca às suas próprias ferramentas poéticas, como a propriedade ventríloqua da poesia dramática: "Cuándo van a entender/ éstos son parlamentos/ dramáticos/ Éstos no son/ pronunciamientos/ políticos". Caberia observar algo parecido acerca da sua ironia, ubíqua e giratória por natureza, também semelhante à sua habilidade para falar nas entrelinhas: "Confío 100% en el lector/ estoy convencido de que hasta los.../civiles / son capaces de leer entre líneas".

Mais interessante que o trabalho convencional de classificar o poeta político é a análise de sua forma de operar politicamente no interior da linguagem. A este respeito, eu aplicaria os conceitos que um brilhante ensaísta chileno, Martín Hopenhayn, usa para definir a operação verbal e crítica de Kafka, guardadas as diferenças da analogia. Hopenhayn chama "literatura do trapézio" àquela que exagera certas feições do seu objeto - como uma caricatura - para feri-lo e transcendê-lo: violenta este objeto, empurra-o até seus limites e assim evidencia sua limitação; enfrenta a linguagem como discurso ideológico e justificação da ordem, a linguagem como discurso insurreto: "O escritor é um trapezista que vende a alma ao diabo para derrotá-la". Pois bem, a poesia política de Parra é muito essencialmente uma "literatura do trapézio" e também, se quisermos, da dança na corda bamba. Quando Parra assume, de certa ordem estabelecida, expressões como "por la libre determinación de los pueblos/ por un mundo sin explotadores/ el orden público está asegurado", o que ele faz é precisamente inverter o sentido do discurso ideológico: subverter. De um slogan convencional extrai seu efeito inverso, a caricatura que fere e transcende: "La izquierda y la derecha unidas/ jamás serán vencidas".

A ironia política e o humor negro de Parra injetam, no interior de um discurso convencional já dado, uma carga de profundidade, uma bomba relógio. Recordemos o enunciado das típicas charadas matemáticas para nos darmos conta da operação verbal subversiva que o poeta cumpre ao reescrever sobre a base implícita dessa convenção: "Poema/ Problema:/ Ciento 4 civiles en un cajón/ cuántas orejas y patas son". Um mecanismo análogo opera no terrível humor negro deste Chiste: "De aparecer apareció/ pero en una lista de desaparecidos".

É evidente que nem todos os poemas políticos de Parra se deixam explicar por esse procedimento, mas isso ocorre em muitos deles, e sobretudo nos melhores. Há outros que pagam um excessivo tributo à ideia, à conclusão ou à moral da história, sem verbalizar a operação subversiva. Mas a antologia está repleta destes acertos que justificam o título - Poesía política - como sólida dimensão de toda sua obra poética.



Texto de Ignacio Valente - que, em realidade, é um pseudônimo de José Miguel Ibáñez Langlois, padre, poeta, teólogo e crítico literário nascido em Santiago do Chile. Aos leitores de Noturno do Chile, livro de Roberto Bolaño, não passarão despercidas as semelhanças entre as figuras de Langlois e do narrador do romance, Sebastián Urrutia Lacroix. Este texto foi publicado no El Mercurio, em 18 de dezembro de 1983. Nos posts seguintes, mais política+Parra, IgnacioXBolaño, etc.