
Um preconceito originado
nos tempos da "poesia pura", e exacerbado nesta nossa década de
recesso político, afirma que os problemas da polis poderiam sujar a pureza das essências líricas, gerando uma
poesia panfletária e ideológica de qualidade inferior. Essa ideia não resiste à
menor confrontação com a história da literatura. Os grandes poetas gregos,
latinos, medievais, modernos e contemporâneos fizeram "poesia
política" numa medida considerável. Poderíamos citar, em nosso século, uma
grande variedade de registros: o tom profético de Trakl, George e Edith Sitwel;
a maneira mista - a perspectiva intimista e pessoal de Kavafis, Machado, Eliot,
Quasimodo e Pasternak; o messianismo de Blok, a fantasia irônica de Maiakovski,
a militância aberta e programática de Brecht, Aragon, Alberti e, especialmente,
do próprio Neruda. É verdade que este último cai, muitas vezes, no panfletário,
no pedagógico, na explicação e na apologia, tornando evidente a especial
dificuldade do gênero; mas, sem dúvida, é autor de certa poesia política de
grande valor. Também o é Nicanor Parra, ao seu próprio modo, que, em contraste
com a seriedade nerudiana - um conteúdo revolucionário sob uma linguagem
"tradicional" -, consegue a subversão mais íntegra da linguagem
mesma, operando através desse elemento político por excelência que é a sua
ironia.
Esta antologia de sua Poesía política (Editorial Bruguera),
com brioso prólogo de Enrique Lafourcade, se constrói desde 1950 até hoje.
Contém excelentes poemas que não são políticos - como "Defensa de Violeta
Parra" -, outros que o são em sentido amplo - batalhas campais de robôs e
energúmenos, fantasmas ecológicos, crítica da vida nacional -, e muitos que são
políticos em sentido estrito e direto. Aqueles que pedem a esta poesia que
"tome partido" se surpreendem com a ubiquidade ideológica do autor,
que torna possível ler seus poemas - escritos, em sua maioria, durante os
quatro últimos regimes do país - de forma quase intercambiável. Obviamente, há
muitos que trazem inscritos seu momento e seu alvo: a Unidad Popular, em poemas
como esses: "Revolución/ revolución/ cuantas contrarrevoluciones/ se
cometen en tu nombre", ou "La realidad no cabe en un zapato chino/
menos aún en un bototo ruso"; enquanto que se trata da atualidade em
versos como esses: "Bese la bota que lo pisotea/ no sea puritano hombre x
Dios" ou mesmo: "Ayer/ de tumbo en tumbo/ hoy/ de tumba en
tumba". Por outro lado, são
quase atemporais as referências de poemas como "Los límites de Chile"
que, em 1968, diz: "Chile limita al Norte con el Cuerpo de Bomberos,/ al
Sur con el Ministerio de Educación,/ al Este con la Cordillera de Nahuelbuta/ y
al Oeste con el vacío de las olas del Océano que se nombró más arriba,/al Sur
con González Videla./ En el medio hay una gran plasta rodeada de militares,
curas y normalistas/ que succionan a través de cañerías de cobre". Inclusive,
há na antologia poemas duplos ou "correspondentes", cujo núcleo é o
mesmo, mas que se matizam de outro modo, segundo o regime contra o qual
apontam.
Esta versatilidade ideológica
provocou contra o autor a acusação de ser "palhaço da burguesia",
feita por certa esquerda. É o previsível para um autor que dispara quase
simultaneamente contra os quatro pontos cardeais, que vive rompendo os esquemas
e os rótulos, e que se deixaria tipificar apenas com o vago título de
anarquista. No aspecto formal, por sua vez, há uma ambiguidade intrínseca às
suas próprias ferramentas poéticas, como a propriedade ventríloqua da poesia
dramática: "Cuándo van a entender/ éstos son parlamentos/ dramáticos/
Éstos no son/ pronunciamientos/ políticos". Caberia observar algo parecido
acerca da sua ironia, ubíqua e giratória por natureza, também semelhante à sua
habilidade para falar nas entrelinhas: "Confío 100% en el lector/ estoy
convencido de que hasta los.../civiles / son capaces de leer entre
líneas".
Mais interessante que o
trabalho convencional de classificar o poeta político é a análise de sua forma
de operar politicamente no interior da linguagem. A este respeito, eu aplicaria
os conceitos que um brilhante ensaísta chileno, Martín Hopenhayn, usa para
definir a operação verbal e crítica de Kafka, guardadas as diferenças da
analogia. Hopenhayn chama "literatura do trapézio" àquela que exagera
certas feições do seu objeto - como uma caricatura - para feri-lo e
transcendê-lo: violenta este objeto, empurra-o até seus limites e assim
evidencia sua limitação; enfrenta a linguagem como discurso ideológico e
justificação da ordem, a linguagem como discurso insurreto: "O escritor é
um trapezista que vende a alma ao diabo para derrotá-la". Pois bem, a
poesia política de Parra é muito essencialmente uma "literatura do
trapézio" e também, se quisermos, da dança na corda bamba. Quando Parra
assume, de certa ordem estabelecida, expressões como "por la libre determinación
de los pueblos/ por un mundo sin explotadores/ el orden público está
asegurado", o que ele faz é precisamente inverter o sentido do discurso
ideológico: subverter. De
um slogan convencional extrai seu
efeito inverso, a caricatura que fere e transcende: "La izquierda y la
derecha unidas/ jamás serán vencidas".
A ironia política e o
humor negro de Parra injetam, no interior de um discurso convencional já dado,
uma carga de profundidade, uma bomba relógio. Recordemos o enunciado das
típicas charadas matemáticas para nos darmos conta da operação verbal
subversiva que o poeta cumpre ao reescrever sobre a base implícita dessa
convenção: "Poema/ Problema:/ Ciento 4 civiles en un cajón/ cuántas orejas
y patas son". Um mecanismo análogo opera no terrível humor negro deste
Chiste: "De aparecer apareció/ pero en una lista de desaparecidos".
É evidente que nem todos
os poemas políticos de Parra se deixam explicar por esse procedimento, mas isso
ocorre em muitos deles, e sobretudo nos melhores. Há outros que pagam um
excessivo tributo à ideia, à conclusão ou à moral da história, sem verbalizar a
operação subversiva. Mas a antologia está repleta destes acertos que justificam
o título - Poesía política - como
sólida dimensão de toda sua obra poética.
Texto de Ignacio Valente -
que, em realidade, é um pseudônimo de José Miguel Ibáñez Langlois, padre,
poeta, teólogo e crítico literário nascido em Santiago do Chile. Aos leitores
de Noturno do Chile, livro de Roberto Bolaño, não passarão despercidas as
semelhanças entre as figuras de Langlois e do narrador do romance, Sebastián
Urrutia Lacroix. Este texto foi publicado no El Mercurio, em 18 de dezembro de
1983. Nos posts seguintes, mais política+Parra, IgnacioXBolaño, etc.