segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A psicologia




Como você representa a falta de peixe?


















Como você faz para surpreender os personagens indesejáveis que deslizam entre seus pensamentos? Enumere diversos procedimentos.


















Ao fim do retorno às suas recordações, coloque uma escada contra a parede, mas não comece a subir sem ter se provido de uma corda, da qual um dos extremos será solidamente fixado ao chão e o outro enrolado ao redor do seu punho esquerdo. Por não terem tomado esta precaução, muitas pessoas jamais retornaram.


Poema de Juan Luis Martínez (1942-1993). Do livro La nueva novela (1977)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Espejismos y realidades de la poesía chilena actual (excerto)




(...)

Toda poesia é uma forma de comunicação, de fraternidade, um ato de amor. Apenas os obcecados pela incomunicabilidade e pela obscuridade podem pensar o contrário. Com razão Gonzalo Rojas disse: "... se minha palavra não tivesse sido escutada: ah, então não teria sido igual! Assim vou. Abrindo o mundo, como posso, com minha palavra, que é apenas parte da palavra dos poetas". É claro que existe uma poesia hermética, por necessidade profunda (por ora acessível apenas a uma minoria), como a de Humberto Díaz Casanueva, por exemplo. Mas junto a estes qualificados e necessários poetas existem os pseudopoetas que se amparam na facilidade de expressar em linhas mal cortadas a dispersão mental, a a-lógica, ou que despejam suas deliquescências adolescentes, seu vanguardismo anacrônico, os que elevam o lugar comum e o discurso de jornal à categoria do espírito, ou os que querendo ser mais Parra do que Parra incorrem em uma antipoesia que costuma não provocar riso, mas lástima. Todos eles, e não são poucos, criam uma confusão que prejudica notoriamente a difusão e o conhecimento da poesia como ela é.

Em que pese toda a grande fama da poesia chilena, e o lugar egrégio que ela ocupa segundo todos dizem reconhecer, a grande maioria dos poetas se bate com o problema de não ter editor, não poder dar a conhecer sua mensagem. Os editores não são filantropos, é claro, e afirmam que poesia não vende, ainda que façam muito pouco para difundi-la. De vez em quando se interessam pelas antologias, pois estas vendem, mas, para a desgraça dos poetas, na maior parte das vezes não são senão "Antojolías"[1] ou improvisações feitas por poetas ou críticos de boa ou má vontade (fora as antologias de Molina e Araya, Selva Lírica, a de Anguita e Teitelboim e, com todas as suas distorções, a de Jorge Elliott, seria difícil encontrar outras criteriosas). No ano passado apenas um livro de um poeta das últimas gerações foi publicado por uma editora comercial: El Viento de los Reinos, de Efraín Barquero. La fuga de Sebasatián, de Jaime Gómez Rogers, apareceu graças a ter vencido o Premio Alerce de la Sociedade de Escritores, que está sob ameaça de ser extinto. Mesmo Gonzalo Rojas teve de financiar grande parte do seu Contra la muerte, que no entanto apareceu em Cuba, e a viúva de Rosamel del Valle, Therése Dulac, financiou a edição póstuma de Adiós enigma tomasol. Assim o poeta, sobretudo o poeta jovem, deve publicar-se arriscadamente, por conta própria, e ao fim, seu livro, sem contar com distribuição, está condenado a ser enviado aos amigos, a não ser que o deixe dormindo num sótão. Situações todas elas deprimentes que contribuem para a separação entre poeta e público. E apenas um tolo pedante ou um pedante tolo pode consolar-se atualmente da pouca difusão dos seus livros dizendo que acontecia o mesmo com Baudelaire. Já não é possível se conformar com a ideia da poesia como um patrimônio de uns poucos e sábios iniciados. Se fosse assim, ela seria um luxo, e não uma necessidade, e o poeta, um ser antediluviano a ponto de extinguir-se, duas coisas fora de toda realidade. Todo criador verdadeiro sabe - e o experimentou - que a poesia é uma linguagem de fraternidade, um meio de alterar a vida individual e coletiva, um sistema de correlação e conhecimento entre homem e natureza.



[1] Trocadilho com as palavras antología e antojo – que significa qualquer coisa como um julgamento apressado, feito sem uma verdadeira análise.



Excerto de um texto de Jorge Teillier (1935-1996).

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Distância




      Indiferença do mundo
e das coisas
diante de mim;
indiferença minha
diante do mundo e das coisas:
mútua correspondência.

      Transito
e caio
de pé.

      A mesma porta
entreaberta
num deserto
murcho sob o sol.

      A gaivota extraviada
numa miragem marinha,
abre as asas,
hirta,
sobre o vazio das coisas.


Poema de Armando Rubio Huidobro (1955-1980). Do livro póstumo Ciudadano (1983).

sábado, 31 de agosto de 2013

Alguns sonhos




Já vão secando os Sonhos
    desta vida
observem-nos lá em cima, alguns
no céu, como brilham!
Abaixo, longínquo, o arco-íris brinca
    com a escuridão
enquanto sobre as rochas canta
    meu coração confundido
Então isto é morrer, o Sonho Azul?
pergunto aos meus irmãos
    da Região Celeste.


*


KIÑEKE PEWMA

Petu amkvy ti mogen ñi Pewma
azkintufimvn wenu, kiñeke Wenu
Mapu mew, ñi wilvfvn
Nag mapu, kamapu mew,
awkantumekey ti relmu zumiñ egu
petu ñi piwke vlkantumekey wente
   kura mu kimvwkvlelay
Feyta anta ti lan, ti
   Kallfv Pewma?
ramtunfiñ ñi pu peñi Kallfv
   mapu mvlelu.


*


ALGUNOS SUEÑOS

Se van secando los Sueños
     de la vida
mírenlos arriba, algunos
en el cielo, cómo brillan
Abajo, lejano, el arcoiris juega
     con la oscuridad
mientras sobre las rocas canta
mi corazón confundido
¿Es este el morir, el Sueño Azul?
pregunto a mis hermanos
     de la Región Celeste.


Poema de Elicura Chihuailaf (1952). Do livro De sueños azules e contrasueños (1995). Autor mapuche e chileno, escreve uma obra sobretudo bilíngue, em mapundungún e castelhano. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Nicanor Parra: Poesia Política




Um preconceito originado nos tempos da "poesia pura", e exacerbado nesta nossa década de recesso político, afirma que os problemas da polis poderiam sujar a pureza das essências líricas, gerando uma poesia panfletária e ideológica de qualidade inferior. Essa ideia não resiste à menor confrontação com a história da literatura. Os grandes poetas gregos, latinos, medievais, modernos e contemporâneos fizeram "poesia política" numa medida considerável. Poderíamos citar, em nosso século, uma grande variedade de registros: o tom profético de Trakl, George e Edith Sitwel; a maneira mista - a perspectiva intimista e pessoal de Kavafis, Machado, Eliot, Quasimodo e Pasternak; o messianismo de Blok, a fantasia irônica de Maiakovski, a militância aberta e programática de Brecht, Aragon, Alberti e, especialmente, do próprio Neruda. É verdade que este último cai, muitas vezes, no panfletário, no pedagógico, na explicação e na apologia, tornando evidente a especial dificuldade do gênero; mas, sem dúvida, é autor de certa poesia política de grande valor. Também o é Nicanor Parra, ao seu próprio modo, que, em contraste com a seriedade nerudiana - um conteúdo revolucionário sob uma linguagem "tradicional" -, consegue a subversão mais íntegra da linguagem mesma, operando através desse elemento político por excelência que é a sua ironia.

Esta antologia de sua Poesía política (Editorial Bruguera), com brioso prólogo de Enrique Lafourcade, se constrói desde 1950 até hoje. Contém excelentes poemas que não são políticos - como "Defensa de Violeta Parra" -, outros que o são em sentido amplo - batalhas campais de robôs e energúmenos, fantasmas ecológicos, crítica da vida nacional -, e muitos que são políticos em sentido estrito e direto. Aqueles que pedem a esta poesia que "tome partido" se surpreendem com a ubiquidade ideológica do autor, que torna possível ler seus poemas - escritos, em sua maioria, durante os quatro últimos regimes do país - de forma quase intercambiável. Obviamente, há muitos que trazem inscritos seu momento e seu alvo: a Unidad Popular, em poemas como esses: "Revolución/ revolución/ cuantas contrarrevoluciones/ se cometen en tu nombre", ou "La realidad no cabe en un zapato chino/ menos aún en un bototo ruso"; enquanto que se trata da atualidade em versos como esses: "Bese la bota que lo pisotea/ no sea puritano hombre x Dios" ou mesmo: "Ayer/ de tumbo en tumbo/ hoy/ de tumba en tumba". Por outro lado, são quase atemporais as referências de poemas como "Los límites de Chile" que, em 1968, diz: "Chile limita al Norte con el Cuerpo de Bomberos,/ al Sur con el Ministerio de Educación,/ al Este con la Cordillera de Nahuelbuta/ y al Oeste con el vacío de las olas del Océano que se nombró más arriba,/al Sur con González Videla./ En el medio hay una gran plasta rodeada de militares, curas y normalistas/ que succionan a través de cañerías de cobre". Inclusive, há na antologia poemas duplos ou "correspondentes", cujo núcleo é o mesmo, mas que se matizam de outro modo, segundo o regime contra o qual apontam.

Esta versatilidade ideológica provocou contra o autor a acusação de ser "palhaço da burguesia", feita por certa esquerda. É o previsível para um autor que dispara quase simultaneamente contra os quatro pontos cardeais, que vive rompendo os esquemas e os rótulos, e que se deixaria tipificar apenas com o vago título de anarquista. No aspecto formal, por sua vez, há uma ambiguidade intrínseca às suas próprias ferramentas poéticas, como a propriedade ventríloqua da poesia dramática: "Cuándo van a entender/ éstos son parlamentos/ dramáticos/ Éstos no son/ pronunciamientos/ políticos". Caberia observar algo parecido acerca da sua ironia, ubíqua e giratória por natureza, também semelhante à sua habilidade para falar nas entrelinhas: "Confío 100% en el lector/ estoy convencido de que hasta los.../civiles / son capaces de leer entre líneas".

Mais interessante que o trabalho convencional de classificar o poeta político é a análise de sua forma de operar politicamente no interior da linguagem. A este respeito, eu aplicaria os conceitos que um brilhante ensaísta chileno, Martín Hopenhayn, usa para definir a operação verbal e crítica de Kafka, guardadas as diferenças da analogia. Hopenhayn chama "literatura do trapézio" àquela que exagera certas feições do seu objeto - como uma caricatura - para feri-lo e transcendê-lo: violenta este objeto, empurra-o até seus limites e assim evidencia sua limitação; enfrenta a linguagem como discurso ideológico e justificação da ordem, a linguagem como discurso insurreto: "O escritor é um trapezista que vende a alma ao diabo para derrotá-la". Pois bem, a poesia política de Parra é muito essencialmente uma "literatura do trapézio" e também, se quisermos, da dança na corda bamba. Quando Parra assume, de certa ordem estabelecida, expressões como "por la libre determinación de los pueblos/ por un mundo sin explotadores/ el orden público está asegurado", o que ele faz é precisamente inverter o sentido do discurso ideológico: subverter. De um slogan convencional extrai seu efeito inverso, a caricatura que fere e transcende: "La izquierda y la derecha unidas/ jamás serán vencidas".

A ironia política e o humor negro de Parra injetam, no interior de um discurso convencional já dado, uma carga de profundidade, uma bomba relógio. Recordemos o enunciado das típicas charadas matemáticas para nos darmos conta da operação verbal subversiva que o poeta cumpre ao reescrever sobre a base implícita dessa convenção: "Poema/ Problema:/ Ciento 4 civiles en un cajón/ cuántas orejas y patas son". Um mecanismo análogo opera no terrível humor negro deste Chiste: "De aparecer apareció/ pero en una lista de desaparecidos".

É evidente que nem todos os poemas políticos de Parra se deixam explicar por esse procedimento, mas isso ocorre em muitos deles, e sobretudo nos melhores. Há outros que pagam um excessivo tributo à ideia, à conclusão ou à moral da história, sem verbalizar a operação subversiva. Mas a antologia está repleta destes acertos que justificam o título - Poesía política - como sólida dimensão de toda sua obra poética.



Texto de Ignacio Valente - que, em realidade, é um pseudônimo de José Miguel Ibáñez Langlois, padre, poeta, teólogo e crítico literário nascido em Santiago do Chile. Aos leitores de Noturno do Chile, livro de Roberto Bolaño, não passarão despercidas as semelhanças entre as figuras de Langlois e do narrador do romance, Sebastián Urrutia Lacroix. Este texto foi publicado no El Mercurio, em 18 de dezembro de 1983. Nos posts seguintes, mais política+Parra, IgnacioXBolaño, etc.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Abro a pálpebra muda

 fecho e verto pra dentro o sol do olho



       minha anima    minha alma procuro



entre liquens negros   algas    vejo boiar
meu rosto carcomido por línguas
Lá vai este olho como boca sedenta     O que procura







     De cima          a baixo


Poema de Soledad Fariña (1943). Do livro Albricia (1988).




quarta-feira, 17 de julho de 2013

A paciência




       Já estou perdendo a paciência;
os dias passam:
nada.

       Inconcebível
que nos alimentemos de gestos todos os dias
e em nosso desjejum não conste nenhum beijo.

       Cada um coça sua cabeça,
resolve seus problemas:
sentamos à mesa
rimos às cegas.

       Já estou perdendo a paciência;
o mais grave: não sei o que farei sem ela.
Fui cavaleiro, corredor e poeta:
nada vale a pena.
Assim não se prospera.
A festa segue a mesma.

       Já estou perdendo a paciência.
Já não se morre de morte natural.
A morte não suporta diferenças.

       Inconcebível:
a Terra segue dando voltas,
o mundo se apaixona e envelhece;
inconcebível:
a Terra segue, segue dando voltas,
e eu, eu que não perca a paciência!


Poema de Armando Rubio Huidobro (1955-1980). Do livro póstumo Ciudadano (1983).

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Circulando, circulando




Tudo está proibido:
a letra, o pão, o vinho.
Frente a cada hora há um guarda
que nos diz: circulando!,
desapareçam, morram,
que lá dentro estão sentados à mesa,
e não devemos alterar o vento,
porque a injustiça tem
uma digestão difícil.

Circulando! Limpem as ruas,
lustrem as botas, pintem as casas,
para que a atmosfera brilhe
como se fosse uma joia,
porque os amos saem neste momento
para o seu passeio cotidiano,
e se deve acolchoar as ruas
com o cansaço mais sóbrio,
e se deve perfumar os mercados
com a desventura mais doce,
e se deve enfeitar as árvores
com feridas recentes,
e se deve levantar rápidos palácios
nos quais eles possam entrar
para descansar em qualquer parte,
mesmo onde há casas pobres
habitadas, nos cantos
onde há simples artistas
tecendo cestos de vime
para criar o pão sagrado,
ou berços essenciais ante os rostos
apaixonados do sol e da terra.

Circulando, circulando, circulando!
saiam das fendas, das últimas
rachaduras onde o trabalho masca
com boca desdentada, do buraco
mais sombrio onde cresce
a florzinha pálida de um menino.

Circulando, circulando, circulando!
já para a rua
com todas as suas coisas tristes,
empurrem para a morte os seus tísicos,
atirem longe os recém nascidos,
quebrem suas panelas com comida,
joguem suas mercadorias ao fogo,
desocupem logo o ar,
a luz, o amor, a esperança,
desocupem a miséria, os piolhos,
que os senhores querem se refrescar
precisamente aqui, a apenas
alguns metros de suas inumeráveis
mansões, e há que pôr tudo isso
abaixo em dois minutos.

Circulando, circulando, circulando!
ou melhor, ajudem, ajudem,
atirem logo suas coisas, seus filhos,
e ajudem, acendam vocês mesmos
o fogo de que precisam no inverno,
mas "com mais valentia", "mais rápido"
e "nada de lágrimas", "nem parecem patriotas"!
Ajudem, destruam tudo,
tragam madeira perfumada,
consigam as mais finas nuvens,
arrastem um pedaço de geleira
para o coquetel, tragam todas
as corolas da primavera
para utilizá-las como copos,
com todo o cansaço da terra
façam rápido uma rede,
trabalhem, trabalhem, trabalhem!
asfaltem o chão com estrelas,
e apressem-se, que os embaixadores se inquietam,
limpem o ar com os braços,
cubram os frutos com lágrimas
frescas, e terminem, esgotando
o esforço de toda a vida,
esta fina pracinha improvisada
para que os amos descansem
por um segundo. Muito bem!


Poema de Efraín Barquero (1931). Do livro La piedra del pueblo (1954).






Tradução dedicada aos desabrigados, incendiados e assassinados pela especulação imobiliária na cidade de São Paulo.

sábado, 6 de julho de 2013

Verão de 1979: começo de um novo block




NO LIMITE da linguagem
                                          me canso.
                     Então, qualquer palavra
                     É um regresso, um para-trás
                     Ou talvez
                     Nada mais que a cabriola,
                     A pirueta, o foguete ou
                     O petardo: ruído
                     Breve, tudo
                     Passa.
                     Há limites na linguagem?
                     Ou só falta o que dizer: o
                     Sentido.     E o som?       A rajada
                     De palavras, o e s t a l a r?
                     Ruído breve,
                                tudo passa.
A vivência:   outro marco ou
Ponto de referência. In-transferível
Substância: comunicável, talvez, por telepatia
-mas não por poesias,      mas não por escritura.
Pra quê?, por quê?           O silêncio.
Melhor.       Melhor
                                      Nada.


Poema de Rodrigo Lira (1949-1981) que encerra Proyecto de obras completas.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A vida nova








MEU DEUS É FOME
MEU DEUS É NEVE
MEU DEUS É NÃO
MEU DEUS É DESENGANO
MEU DEUS É CARNIÇA
MEU DEUS É PARAÍSO
MEU DEUS É PAMPA
MEU DEUS É CHICANO
MEU DEUS É CÂNCER
MEU DEUS É VAZIO
MEU DEUS É FERIDA
MEU DEUS É GUETO
MEU DEUS É DOR
MEU DEUS É
MEU AMOR DE DEUS

Poema de de Raúl Zurita (1950). Os versos foram escritos, com fumaça, no céu da cidade de Nova York, em 1982. Os registros fotográficos apresentados aqui foram feitos por Ana Maria Lopez e Lionel Cid e estão publicados no livro Anteparaíso. Um registro parcial em vídeo pode ser visto aqui. A ideia das escrituras no céu foi apropriada por Roberto Bolaño na sua novela Estrela distante. Abaixo, apresento trechos de uma entrevista (concedida a Chiara Bolognese, disponível aqui) em que Zurita comenta a sua relação com a visão do Chile e com a obra de Bolaño.


*





(...)

Você já tinha lido Bolaño antes da publicação de Estrela distante? O que pensa da literatura dele? Sua opinião mudou depois de ter sido "usado" como personagem?

RZ: Não. Soube de Bolaño apenas no final dos anos noventa, porque Carlos Olivares, um escrito chileno que morreu há alguns anos, me falou dessa novela, e a comentou comigo precisamente porque havia um personagem que escrevia poemas no céu. Me pareceu fantástico, e certa vez que me perguntaram sobre isso respondi que um artista tinha o direito de pegar o que quisesse, de onde quisesse, sem pedir permissão a ninguém, e que se as escrituras sobre Nova York tinham servido para modelar um personagem, estupendo. Nunca li a novela inteira, me refiro a lê-la do princípio ao fim, porque, claro, a minha curiosidade era saber que diabos outra pessoa poderia escrever no céu. Foi uma desilusão. Senti que ele fazia que seu personagem escrevesse tudo o que eu teria descartado em dois segundos, obviedades como frases em latim e coisas assim; foi como ver meus rascunhos. Não, o autor da novela não tinha entendido nada, estes versos eram óbvios e maus, além de tecnicamente impossíveis. Com um avião daqueles você não pode escrever essas frases, Wieder acabaria vomitando até as tripas com tantas voltas. Seria preciso cinco aviões que voassem em linha reta. Seria preciso uma esquadrilha.

Você e Bolaño representam duas formas diferentes de suscitar e de estar entre as polêmicas do mundo cultural chileno. Refiro-me a esse universo que Bolaño sempre criticava e agitava assim que chegava ao Chile, e que também lhe tratou bastante mal, certo? Pode falar um pouco sobre isso?

RZ: Um poeta não pode se limitar, é uma bobagem fazê-lo, porque os outros já o farão, e muito; não terão passado cinco minutos e logo vão dizer que isso não pode, que isso não é poesia, ou que você está louco. Acho que sei algo a respeito disso, é muito chileno. Mas eu permaneci ali, construímos sob uma ditadura, fizemos as ações de arte sob a ditadura, não fazíamos coisas chiques como virar poetas malditos interrompendo uma leitura de Octavio Paz. Imaginar poemas escritos no céu ou traçados sobre o deserto de Atacama foi minha íntima forma de resistência, de não me resignar, de não morrer na noite feroz do Chile. Inventei as ações de arte que fizemos com o CADA, como lançar, de alguns aviões, quatrocentos mil panfletos sobre Santiago em 1980, em plena ditadura, porque toda a nossa vida estava nisso, toda nossa juventude, nosso medo e nossa beleza. Nos tocou, a mim e a Bolaño, viver em mundos muito diferentes, e as coisas que atacamos sob una mesma palavra, Chile, eram duas coisas diametralmente distintas, que jamais se juntaram e que só têm em comum a palavra dor. Os amigos de Bolaño eram crianças fazendo travessuras, pequenas maldades no DF. Nós tivemos que aprender em dois segundos a viver sob as barbas de Pinochet, não tínhamos tempo para esse passatempo inocente de inventar-nos uma marginalidade ad hoc, não éramos infrarrealistas. Pessoalmente, teria trocado o pior dos empregos que Bolaño teve pelo melhor dos empregos que eu consegui ter nesses anos. Eu roubava livros nas livrarias não para lê-los, mas para vendê-los e poder comer. Tudo isso não diminui em nada a envergadura de Os detetives selvagens que li, imagino, com a mesma devoção com que ele leu Anteparaíso, de onde tirou as escrituras no céu.

(...)

Nestas páginas se delinearam analogias e diferenças entre sua visão do Chile e da ditadura e a visão de Bolaño. O que pensa da poética de Bolaño? No que concorda e no que discorda? Acredita que o Bolaño poeta sobreviverá?

RZ: A poesia de Bolaño, me refiro ao que ele ou seus editores ou seus herdeiros qualificaram como tal, é insuportável, mas não são piores que os poemas de William Faulkner, e Faulkner conseguiu ser Faulkner como Bolaño conseguiu ser Bolaño. O que quero dizer é que para quem se importa com isso, não conseguir escrever um poema minimamente passável e perceber que se é um péssimo poeta, produz um sentimento de frustração, de fracasso, de vacuidade, de inutilidade, que só restam duas possibilidades: ou você passa a fazer parte do exército dos ressentidos, dos quais o mundo está cheio e diante dos quais o melhor é fazer o que Virgílio diz a Dante no começo do terceiro canto do Inferno: "guarda e passa", ou você escreve The sound and the fury. Então, que providencial que William Faulkner, que Julio Cortázar, que Roberto Bolaño, tenham sido péssimos poetas; como compensaram! As grandes obras que eles criaram compartilham uma condição paradoxal: foram extraordinários escritores graças a terem sido horripilantes poetas.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Estética - polêmica / Carta de Winétt de Rokha a Witold Gombrowicz (excertos)




(...)


Os versos agradam bastante à humanidade e a prova disso é que juízes, militares, médicos, advogados, políticos, só se sentem grandes quando dizem que num dia distante: eles também faziam versos...

Que alguém não goste de versos, isso pouco importa à Poesia universal.

(...)

O jogo de caça às imagens que o senhor Gombrowicz propõe poderia ser resolvido com a elementar frase escolar: a ordem dos fatores não altera o produto. Se havia imagens belas, se havia poesia, pouco importava lê-las antes ou depois. Se o poema não tinha uma espinha dorsal onde se apoiar, ou, em último caso, um tema, coisa absurda no poema moderno, cada imagem poderia viver por si mesma.

O mais natural é que os poetas escrevam, principalmente, para os poetas. Os poetas de massa, Pablo de Rokha, Whitman, serão lidos e apreciados por seus povos daqui um século.

A razão é bem simples. Um poeta de categoria que, durante trinta e tantos anos trabalha sua personalidade, ou seja, seu estilo, até alcançar o grau máximo de perfeição, não poderia ser entendido por aquelas multidões que, enquanto ele queimava as pestanas à luz de um lampião surdo, coçavam, sob o sol, a crosta da indiferença culpável ou da estupidez congênita.

O autor do artigo "Contra los poetas" faz alarde do fato de não gostar da poesia pura. Se por isso o senhor Gombrowicz entende a poesia abstrata que acredita viver à margem dos acontecimentos exteriores, dou a ele toda a razão.

Não é possível imaginar um senhor com a cabeleira cheia de piolhos, com barba por fazer, escrevendo loas à amada imóvel ou à lua, enquanto as multidões aterradas da Europa e da Ásia vão pelos caminhos como cães desterrados, famintos, esqueléticos, doentes de dor e impotência.

A poesia, senhor Gombrowicz, nunca é excessiva.

Os grandes poetas não desprezam elementos apoéticos, mas os utilizam. Outra vez lembre-se de Whitman ou de Rokha. Eles, precisamente, destruíram o que o senhor chama de monotonia.

É natural e lógico que o escritor e poeta profissional tenha, para seu desenvolvimento e seu uso, um material próprio selecionado. Se não fosse assim, seria como pedir a um médico que usasse uma linguagem de carroceiro ao se dirigir aos seus colegas em algum congresso ou aula universitária.

Queira-se ou não, os poetas ..................................................

Sem ir mais longe, Nietzsche deu parte do seu trágico talento a Hitler.

A poesia jamais será uma máquina porque para sê-lo precisaria deixar de ser individual.

A forma religiosa, em poesia, é a administração do eu, que se utiliza dessa poesia para brilhar, em defesa própria.

A forma laica é a arte coletiva, ou seja, o marxismo.

Os poetas não precisam de vinculações ex profeso com o meio porque, se são poetas, estão vinculados de fato com sua época e com a humanidade que os rodeia. Sem isso seriam inexistentes.

A arte não pode nem deve rebaixar-se às massas, isto seria subestimá-las. São as massas que devem elevar-se até a arte.

O Ulisses de Joyce me parece uma das obras máximas de um século. Não me aborrece por excesso de técnica. Penso que Joyce foi um artista-psicólogo, produto necessário, de superfície, daquela Inglaterra hipócrita e falaz que sempre precisou desterrar os seus gênios: Byron, Wilde, Joyce.

Seu exemplo do xadrez é nítido. Além disso, é moderno. Nos Estados Unidos, ninguém nunca discute com os adversários, nem em religião nem em política. A discussão é o reforço lógico das próprias ideias e convicções.

As assonâncias e dissonâncias já são um tema escolar, elementar, que ninguém leva mais em conta.

Se o poeta, ao escrever, pensasse que será lido por militares e sapateiros deveria se remontar à Bíblia e amarrar uma pedra no pescoço e se atirar ao mar.

O senhor pensa que o poeta, ao dirigir-se aos demais, parece se dirigir de cima, isto não é correto, o que acontece é que ele se dirige desde outro ângulo. Não existe essa coisa de cima e de baixo, há distância, simplesmente.

(...)

Por qual motivo, senhor Gombrowicz, o senhor acha que os espectadores riem e caçoam num "Congresso de escritores"? Pura e simplesmente por inveja, por incapacidade. Por que esses mesmos espectadores não caçoam num congresso de mineradores, de médicos ou de políticos? É que estes últimos servem no imediato.

Dificilmente Shakespeare ou Dostoievski ou Pascal podem ser exemplos de poetas específicos como seriam em último caso Whitman, Lautréamont, Rimbaud ou Baudelaire, Byron ou Poe.

A poesia pura é, nestes momentos, francamente estúpida. A versificação com ritmo é uma forma arcaica que pouco a pouco tem que desaparecer.

A rosa, o amor, a noite, os lírios, existirão sempre que o poeta saiba situá-los dentro de um estilo novo e encontre, em relação a eles, a distância e a perspectiva necessária de que todas as coisas precisam para existir no mundo da Arte verdadeira.

Ninguém que não seja um degenerado escreve para si mesmo, senhor Gombrowicz. Nem Narciso seria capaz de se contemplar em águas paradas. Provavelmente se contemplaria em águas correntes.

(...)

Os livros são lidos. Pergunte nas editoras. Somente na Argentina se edita 20 milhões de exemplares por ano.

A criança ama os poetas, não porque seja ensinada a amá-lo, mas porque os poetas têm a alma das crianças quando são puros.


Esta carta, escrita por Winétt de Rokha (1892-1951) a propósito e em resposta à conferência "Contra los poetas", do autor polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), aparece anexa ao artigo "Winétt de Rokha y la vanguardia literaria en Chile", de María Inéz Zaldivar, com o título "Estética - polémica". O artigo está publicado no volume Bibliografía y antologia crítica de las vanguardias literárias - Chile, organizado pela própria María Inés Zaldivar e por Patricio Lizama.

*



A polêmica conferência de Gombrowicz, em tradução minha e de Clarisse Lyra, pode ser lida no Caderno de Leituras No. 17, publicado na Chão da Feira.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O ouvido




a L.v.B.
(Study for a conversation piece)


1. O ouvido é um órgão às avessas; só escuta o silêncio.

2. Se o ouvido não fosse um órgão às avessas, quer dizer, um órgão feito para escutar o silêncio, só ouviríamos o ruído ensurdecedor produzido pelas galáxias, pelas nebulosas, pelos planetas e pelos demais corpos celestes em seus deslocamentos através dos enormes espaços interestelares.

3. Os sons, ruídos, palavras, etc., que o nosso ouvido capta, são na verdade borbulhas de silêncio que viajam desde a fonte emissora que as produz até o órgão receptor de silêncio que é o ouvido.


Excerto do capítulo VII (El desorden de los sentidos) de La nueva novela (1977), livro de Juan Luis Martínez (1942-1993).

terça-feira, 25 de junho de 2013

Golpes de guitarra





Durmo/ está claro
e há uma janela aberta/ árvores
esperando lá fora

mas dentro de mim uivam ruas escuras
carregadas de álcool/ ardendo e perigo vivo
                                     muito perigo nos enormes edifícios
                                     de merda
                                     morte
                                     dor

ruas de gente sem um real no bolso
assassinos que caminham drogados/ e choram
com seu instinto de conservação ao vento

Estes golpes de guitarra elétrica acoplada
e Jimmy Hendrix
                         quem não recorda seu guinchar
com suas concentrações de unidade
e rios que despencavam do céu
como cantos blues mapuches
mirando o Poente subir
para encontrar-se com Deus?

                                              Nestas horas as estradas e caminhos
                                       solitários irão pelo país
                                       cobertos por uma maravilhosa luz azul
                                       festas longínquas sobre
                                       o barco iluminado

o mar que cresce e cresce em cada coração patriótico
uma janela aberta árvores
esperando lá fora
cada um cantando sua canção nacional


Poema de José Ángel Cuevas (1944). Do livro 30 poemas del ex-poeta José Ángel Cuevas (1992).

O poeta e o poder


Dos poetas chilenos que vivem no Chile, o mais interessante é Juan Luis Martínez. Dos que não vivem aqui, David Rosenmann Taub. Os dois, alheios a grupos, dedicam-se àquilo que lhes interessa - não à notoriedade, mas à poesia.

Comecemos pelo que está mais próximo. Publicou pouco; sua obra mais notável é "La Nueva Novela". Este romance é poesia em verso.

Por uma razão misteriosa, a poesia no Chile trata de todos os grandes temas com atrevimento; enquanto que a prosa de ficção apenas margeia vários dos mais cotidianos, profundos e urgentes. Este é o caso do poder. É bem sabido que os grandes assuntos literários são o amor (e seu contrário), o poder (e seu contrário) e a morte (e seu contrário...). O amor de Sicrano e Fulana, ou dois sicranos entre si, mais fulanas consigo, costuma ser o tema dos romances. A morte, assunto de todos, e a luta contra ela, também o são. Mas também o poder e seus contra-poderes, o ser objeto e, ainda mais, sujeito no exercício do poder? Como se isso fosse um assunto insignificante; como se a política - para chamar aquilo que é relativo ao poder com essa palavra complexa - não ocupasse o tempo dos chilenos, incluindo-se aí os escritores. Conversem com qualquer um. É mais do que provável, é certo que começará a conversa fazendo referência àqueles que mandam, uniformizados ou não, àqueles de quem dependemos com gosto ou desgosto; os que condicionam nossas vidas, quer estejamos dormindo ou acordados.

O poeta Martínez, em várias partes de sua "nueva novela" em verso, fala do atroz problema do poder. A última parte do seu livro, depois de singulares "Notas y referencias", se intitula "Epígrafe para un libro condenado: (La Política)". A epígrafe mesmo diz: "O pai e a mãe não têm o direito da morte sobre seus filhos, mas a Pátria, nossa segunda mãe, pode nos imolar para a imensa glória dos homens políticos. F. Picabia".

"La desaparición de una familia", ainda que o autor não o tenha concebido dessa forma, é o maior poema de desaparecidos de que se tem memória. O poeta sempre fala daquilo que ocorre, ainda que não o saiba. Assim, repete ao final de cada estrofe:

"al menor descuido se borrarán las señales de ruta
y de esta vida al fin, habrás perdido toda esperanza".
"al menor descuido olvidarás las señales de ruta"
"al menor descuido confundiréis las señales de ruta"
"al menor descuido ya no escucharás las señales de ruta".

E ao final:

"nunca hubo ruta ni señal alguna
y de esta vida al fin, he perdido toda esperanza".

O grande gênero da literatura no Chile é a poesia lírica. Fragmentários, contraditórios, incoerentes, os pobres líricos revelam a verdade espiritual de uma sociedade que não é muito completa, nem unívoca, nem congruente. Os poetas no Chile se atrevem a enfrentar-se a si mesmos, enfrentam aquilo que os rodeia e esta realidade irrisória que em vão se tentaria compor como unitária, transparente, incluída em si mesma.

E este é o maior poeta dentre os que vivem aqui. E é, além disso, uma Figura. Benigno, afável, generoso. Estar com ele acalma. Pode se visitado numa vila interior adentro. Igual a si mesmo, alto e ligeiramente inclinado, como que para favorecer a visita, mais educado, porém com simplicidade, do que costumam ser os poetas, que em geral são rabugentos, cheios de si e distantes dos outros, ansiosos, arbitrários. Que alívio! Não fala mal de ninguém, e não porque desconheça o Mal. Seu livro trata dos desarranjos que o pecado original produz cotidianamente. Pois seu tema central é o sacro. Corrijo. Sua terrível ausência.

"borroso en su designio
borrándose al borde de la página"
"en señal de infinito amor a Dios".


Texto de Armando Uribe Arce (1933).

*





Obras de Juan Luis Martínez (1942-1993).

Quando todos partirem





Quando todos partirem para outros planetas
eu ficarei na cidade abandonada
bebendo um último copo de cerveja,
e logo voltarei à vila para onde sempre retorno
como o bêbado ao bar
e a criança a cavalgar
na gangorra quebrada.
E na vila não terei nada que fazer,
senão encher os bolsos com vaga-lumes
ou caminhar à beira dos trilhos enferrujados
ou sentar-me no roído balcão de um armazém
para falar com antigos companheiros de escola.

Como uma aranha que percorre
os mesmos fios de sua rede
caminharei sem pressa pelas ruas
invadidas pelo mato
olhando os pombais
que vêm abaixo,
até chegar à minha casa
onde me isolarei para escutar
discos de um cantor de 1930
sem tratar jamais de olhar
os caminhos infinitos
traçados pelos foguetes no espaço.


Poema de Jorge Teillier (1935-1996). Do livro El árbol de la memoria (1961).